segunda-feira, 27 de outubro de 2014

O blogger retirou a foto do blog e não quer aceitar outra. Por que?

terça-feira, 9 de novembro de 2010

O antepassado

O bisavô de Dorothéia ficava sempre naquela parede, junto à porta de entrada. Era um imenso retrato pintado, moldura de madeira trabalhada. Trajava terno escuro, e no meio da gravata escarlate sobressaía um belo brilhante que, se não fosse pintado, valeria uma fortuna. Do bolsinho do colete saía uma corrente dourada que fazia uma curva elegante e se escondia na aba oposta do paletó aberto. Era de um relógio que nunca aparecia. Talvez nunca tivesse existido.

A figura do antepassado da dona da casa era imponente, com aparência de comendador, cabeça erguida, a fisionomia grave. Estaria na casa dos sessenta, os cabelos grisalhos repartidos do lado, e um bigode cinza bem aparado assentava-se sobre os lábios finos. Equilibrado no nariz adunco, um pince-nez de ouro emoldurava os olhos azuis, sempre cravados em quem passasse à sua frente. Enfim, a tela, a moldura e o personagem formavam um conjunto como convinha a um antepassado de uma família tradicional.

Em casa, só quem apreciava aquele quadro eram a própria Dorothéia e os cupins. Estes, por duas ou três vezes, haviam obrigado a família a contratar custosos trabalhos de restauro do enorme trambolho. Trambolho aliás era como Eufrates, marido de Dorothéia, considerava a tela.. Desde o casamento, e lá se iam 30 anos, o tal antepassado passou a morar com eles. Ao longo do tempo, Eufrates, com o apoio dos filhos, havia negociado diplomaticamente junto à mulher a retirada do retrato de casa. Mas ela sempre se mantinha irredutível.

Um dia, o casal recebeu uma proposta irrecusável de famoso antiquário: a tele seria comprada e muito bem paga por um cliente seu que havia ficado rico e necessitava do respaldo de uma ascendência tradicional. Após muito pensar e muito se lamentar, a mulher rendeu-se aos argumentos de Eufrates e dos filhos. Afinal, os valores envolvidos na transação haveriam de curar a sua dor de consciência.

O bisavô de Dorothéia mudou de casa e de nome, e hoje posa de antepassado — com status de comendador — da nova família, o retrato orgulhosamente pendurado em uma outra parede da cidade.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

O galo Bin Laden

O meu livro "O galo Bin Laden e outras crônicas bem-humoradas" pode ser lido livremente no site:

http://issuu.com/junqueiraayres/docs/ogalobinladen

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Frases cínicas

# “Há gente que vem ao mundo a passeio e gente que vem ao mundo a serviço. Eu, por exemplo, vim a passeio, mas acharam por bem me dar serviço para fazer."

# “A coisa está tão preta, tão negra, que tem um ceguinho lá na rua que tem medo de sair de casa.”

# “Cultura popular é uma das coisas mais democráticas que conheço: o povão faz e a elite consome.”

# “Telefone tocando de madrugada... ou é engano ou sua família diminuiu.”

# “As fotografias não mentem: eu sou duas pessoas. Pelo lado direito sou um, pelo esquerdo, sou outro. Mas o raio do nariz é o mesmo.”

# “Como dizia um poeta egocêntrico, parodiando o outro: ‘Deus, ó Deus! Onde estou que não respondo!”

# “O casal era tão viciado em shopping que, quando os filhos nasciam, não lhes botava nomes. Botava etiquetas.”

# “Era um autêntico nobre: quando criava barba, ficava à cara de D. Pedro II. Quando raspava, ficava à bunda do imperador.”

# “Espelho, espelho meu! Alguém escova os dentes mais feio do que eu?”

# “Depois de certa idade, o dicionário serve para a gente se lembrar do que nunca soube.”

# “Nem toda mulher de olhar dissimulado deve ser uma Capitu. Mas é bom, de vez em quando, reparar a cara dos meninos.”

# “O domingo está chato? Sem perspectivas de melhorar? Ânimo! Vá almoçar com a sua sogra.”

# “Em caso de estupro de gay, à vítima cabe o ânus da prova.”

# “O amor platônico engravida a mulher de ilusões.”

# “Ao contrário do que diziam os juristas romanos, a bunda vicia.”

Camone, bói!

Estou deitado de bruços num meio de uma touceira de banana. A posição é muito incômoda, mas fico coberto. Consegui chegar aqui sem ser visto, em três pulos, vindo de lá de trás da velha jaqueira. Meu corpo está colado ao chão, a cabeça levemente erguida, os olhos perscrutando o território inimigo. A mão direita segura firme o cabo do revólver, o dedo comprimindo nervosamente o gatilho.

O calor é demais. O sol a pino me queima a cabeça e o pescoço. Perdi o chapéu há pouco, correndo no meio do pasto por entre os galhos espinhentos dos maricás. A camisa, um tanto rasgada, está encharcada de suor, que me escorre desde testa, ardendo os olhos. Não posso enxugá-los com a mão. Qualquer movimento em falso será fatal. Se o bandido me descobre, sou um homem morto.

Tento controlar a respiração, ofegante pelo esforço e pela tensão. Talvez por um pouco de medo, também.

Acho que o miserável está escondido no meio daquele mato, a uns cinqüenta metros à minha frente. Entre nossas posições, mais para a direita, há um tronco de cajazeira, caído e cortado, grande bastante para me abrigar. Se conseguir chegar lá, posso rastejar até a plantação de mandioca. Então, dou a volta no terreno e pego o sacana por trás.

Fazendo planos, permaneço com o olhar fixo nos arbustos lá na frente, a cabeça encostada na bananeira, esperando o momento certo para me mover. De repente, pelo canto do olho vejo um minúsculo vulto escuro passar perto do meu rosto. Não dou atenção, não posso desviar a vista do esconderijo do bandido. Logo, outro vulto segue o primeiro, e mais outro, e mais outros... FORMIGAS!!

Porra! Estou em cima de um formigueiro!!!

Desesperado, consigo dar um salto de sapo e caio deitado mais adiante, em terreno aberto. Rolo e rastejo rapidamente em direção ao tronco caído, ralando o peito e os braços nos torrões secos do massapê.

O coração dispara. Fico com os sentidos atentos, procurando perceber por qual lado o bandido vai aparecer. Com certeza ele já me descobriu e vem para me matar. Puxo o cão do revólver para trás.

Nada. Tudo quieto, ele não me descobriu. Então, me acalmo, desarmo o revólver e vou até a ponta do tronco arriscar uma olhadela lá na frente. Ninguém à vista. Bem, agora é só ganhar as mandiocas, dar a volta pela casa de farinha e retornar por trás do pistoleiro.

Já estou do outro lado da casa. Devem ter se passado uns bons vinte minutos desde que saí do bananal. Até aqui, tudo bem. Nenhum sinal do bandido. Me arrasto, contornando a ruma de lenha seca. A posição é ótima. O campo está livre.

Há uma pedra de bom tamanho entre mim e os arbustos onde o bandido deve estar escondido. Mais uma vez, vou rastejando, devagar. Não tenho pressa. Ele deve estar vigiando o outro lado, nem imagina que vou chegar por trás. Rarará! Sou mais inteligente que ele.

Junto à pedra, faço uma última revisão no revolver. Tudo OK! Munição bastante para um longo tiroteio. Mas, nem vai precisar. Será um tiro só, certeiro, se ele não se render. Daqui que ele se vire, eu toco fogo.

Bem, lá vou eu. Tenho que ficar calmo, respirar o mínimo possível. Não pode haver qualquer ruído, senão sou um homem morto.

Estou chegando. O revólver está pronto, puxo de novo o cão para trás, o dedo firme no gatilho. Olha lá, vejo até a ponta do chapéu do desgraçado. Que surpresa ele vai ter!

Meu coração parece que vai pular da boca. Uma cólica repentina me “rasga” a barriga. Respiro fundo. Decidido, os olhos atentos, começo a me levantar para o assalto.

- CAMONE, BÓI!

Quase me borrei todo quando ouvi aquela voz atrás de mim e senti um cano duro encostado nas minhas costas.

- Porra! Vá meter susto na puta que pariu! O que você está fazendo aí atrás? Você deveria estar deitado ali no mato - grito, indignado.

- Rarará. Ganhei, te peguei de novo - zombou o “bandido”.

- Que banana! Onde é que você se meteu esse tempo todo? Estou há horas me arrastando pelo mato à sua procura... E aquele chapéu? - reforço a indignação.

- Quem mandou me procurar lá longe no pasto? Eu estava no bananal, e aí você passou a porteira em direção aos maricás. Então, fui pra casa merendar. Como você estava demorando de chegar, vim lhe procurar. Encontrei você rastejando por detrás da pedra. Aí, eu lhe peguei. E esse chapéu velho não é meu, alguém o perdeu aí. Amanhã, vou ser bandido de novo - disse meu primo.

- Aqui pra você! Já tem três dias que sou mocinho. Não quero mais. Ou agora vou ser o bandido ou não vou mais brincar - falei, retado da vida, enfiando o revólver de espoleta no coldre.

- Problema seu. Você não sabe perder. Vamos embora para casa que já é hora do almoço e sua mãe deve estar preocupada com a gente.

Um conto russo

É sabido que a arte afasta o artista do convívio social, por força do seu trabalho. A sua obra, sim, aproxima os demais mortais na medida em que, exposta, atrai para um mesmo espaço pessoas das mais diversas procedências, idades e interesses para apreciá-la. Alguns são curiosos, outros, conhecedores, e ainda há o grupo dos apaixonados. Esses últimos, apesar de minoria, são pessoas que muitas vezes não medem sacrifícios para ter ou ver de perto o objeto de sua paixão.

Ângela fazia parte dessa última categoria. Moça de hábitos simples, sem muitos recursos, nascida no interior do estado, era professora do ensino público em Salvador. Estudiosa da cultura de sua terra, só vivia com livros debaixo do braço. Mas tinha uma predileção: a arte russa. Era capaz de passar horas em depósitos insalubres de sebos a garimpar livros sobre a Rússia. Correspondia-se com inúmeros livreiros do país, de quem recebia informações da existência de obras sobre o tema, não obstante não tivesse condições de adquirí-las. Contentava-se com cópias xerocadas de partes que lhe interessavam e que o pessoal lhe mandava.

Certa feita, escarafunchando o depósito de um sebo em Salvador, encontrou um livro que há anos procurava, e que o próprio dono do sebo dizia não possuí-lo. Em três volumes, a obra fora escrita por um embaixador francês na corte russa e continha profundas e perspicazes observações e análises sobre o modo de vida e as artes da Rússia ao tempo do czar Nicolau II, com ilustrações maravilhosas.

A batalha maior não foi remexer pilhas e pilhas de livros usados, empoeirados, e sim pechinchar com o dono do sebo um preço razoável que ela pudesse pagar. Por fim, acertou-se um valor que seria dividido em algumas prestações, tendo Ângela passado dificuldades nos meses seguintes para ter o prazer de ler, e reler, e reler aquela obra monumental. Mas, o orgulho maior era ter acesso àquelas informações.

Um dia, ela soube pelos jornais que, na quinzena seguinte, o Museu de Arte de São Paulo, o Masp, iria abrigar uma exposição com parte do acervo artístico do Kremlin. Ângela ficou excitada com a notícia, e se pôs a planejar uma viagem à capital paulista para apreciar de perto objetos de sua adoração que só conhecia através dos livros.

Logo, a triste realidade caiu sobre si como um balde de água gelada retirada do Rio Moscou: não tinha dinheiro para a empreitada. Mesmo assim, passou noites sem dormir, ansiosa, estudando uma maneira de conseguir os recursos necessários. Uma oportunidade dessas ela não poderia desperdiçar. Era mais fácil ir a São Paulo do que à Rússia.

Resolveu então vender o único bem valioso que possuía, aquele livro raro que adquirira com tanto sacrifício. Procurou o dono do mesmo sebo onde o comprara, que lhe propôs recomprar por um preço bem abaixo do que ela tinha desembolsado na época. Aquele dinheiro mal daria para as passagens de ônibus. E as demais despesas com a estadia?

Desolada, botou os três volumes debaixo do braço e voltou para casa. Ao ver a frustração estampada no rosto de Ângela, seu pai ainda brincou com ela, para desanuviar o momento, comentando com o outro filho:

- Qual o problema com “Sovaco Ilustrado”?

Ao saber da dificuldade da filha, ele prontificou-se a conseguir o dinheiro para a viagem. Não seria, pois, necessário que ela se desfizesse daquele livro que tanto amava e que tanto sacrifício fizera para adquiri-lo. Mas, ao voltar, ela teria que dar um jeito de reembolsá-lo.

E então, feliz e satisfeita, lá se foi Ângela para a capital paulista a bordo de um ônibus comercial, numa viagem de trinta e duas horas, com várias paradas pelo caminho. Ficaria alojada no apartamento de uma amiga para quem havia telefonado antes do embarque, “convidando-se” como hóspede por uma semana. Economizaria as despesas com hotel, guardando o dinheiro para atividades paralelas à exposição do Masp. E o que São Paulo mais tinha eram eventos culturais dignos de visita.

Durante os dois primeiros dias da exposição, ela percorreu avidamente os salões do museu, extasiada com os objetos, jóias e ícones da arte russa e com os quadros de pintores famosos pertencentes ao acervo do Kremlin. Depois, ela se deteria em cada seção para uma apreciação mais minuciosa.

No início da manhã do terceiro dia, mal as portas do Masp foram abertas, Ângela já estava em frente àquelas peças que eram a sua paixão. A certa altura, sentiu a presença de alguém atrás de si. Ao se virar, deparou-se com um senhor idoso, alto, bem magro, cabelos brancos e bigode grisalho, os olhos de um azul profundo. Estava elegantemente vestido com um terno preto, e uma flor amarela destacava-se na lapela.

- Desculpe, senhorita, mas a tenho notado aqui todos os dias, sempre demonstrando um ar de grande interesse e êxtase.

O ancião tinha o sotaque cerrado, meio sulista, meio estrangeiro. De cara, Ângela achou-o simpático, e logo estavam conversando como se já se conhecessem há anos. Ela contou-lhe o motivo de seu interesse pela exposição e que até fizera sacrifício para vir da Bahia.

Ele lhe revelou morar no Rio Grande do Sul desde quando, ainda pequeno, veio da Rússia com os pais e irmãos, fugindo dos horrores da Revolução Bolchevique no início do século passado. Na pouca bagagem que puderam carregar vieram alguns livros que seus pais fizeram questão de trazer para que os filhos não se esquecessem a sua terra natal.

Assim, o professor Dimitri - pois era professor de História Universal numa cidade do interior gaúcho - cresceu e vivei muito ligado às suas raízes eslavas, apaixonado pela cultura russa. Por esse motivo, disse-lhe ele, ficara impressionado com o interesse e extrema atenção com que aquela moça brasileira, sem feições européias, examinava as peças de arte da exposição.

Por todo aquele dia, e pelos subseqüentes, Ângela foi ciceroneada pelo professor Dimitri, que lhe deu verdadeiras aulas sobre a arte russa. Ensinamentos que Ângela jamais conseguira ou iria conseguir encontrar nos livros. Até na hora do almoço eles passavam juntos, conversando, em um restaurante comercial na galeria entre a Avenida Paulista e a Alameda Santos, perto do Masp. As despesas eram divididas, por insistência de Ângela e para frustração do professor Dimitri, que queria proporcionar mais gentilezas àquela mocinha do interior da Bahia que viera a São Paulo por amor à cultura do seu distante país.

Às vezes, ele tinha a voz entrecortada, fazendo uma pausa para a entrada de ar nos pulmões. Outras vezes, ele procurava disfarçadamente um banco para descansar nas longas caminhadas pelo museu.

No último dia da exposição, as portas do Masp já encerradas, Ângela e o professor Dimitri se despediam no calçadão em frente.

- Eu gostaria, Ângela, de lhe fazer dois pedidos - àquela altura, a intimidade havia suprimido o tratamento “senhorita”, embora a moça ainda mantivesse o “professor”.

- O que o senhor me pedir e eu puder fazer, o farei com imensa alegria. Não imagina como me sinto gratificada pelos ensinamentos que me passou. Esses dias foram maravilhosos. Jamais vou esquecer.

- Primeiro, gostaria de lhe dar um beijo.

Ângela corou do dedo do pé à raiz dos cabelos. Jamais havia sido beijada por homem algum. Seus lábios ainda eram virgens. E teriam que ser desvirginados logo por um homem bem mais velho, com idade de ser seu avô? Paciência. Afinal, o bem que ele lhe proporcionara durante aqueles dias merecia alguma retribuição. Que fosse um beijo, então! Mas, e o outro pedido, o que seria? Tensa, Ângela fechou os olhos e esperou.

O professor Dimitri segurou-a gentilmente pelos braços e deu-lhe um beijo em cada face.

Aliviada, ela abriu os olhos, sorriu e perguntou:

- E o segundo pedido, professor?

Ela percebeu que o semblante do ancião ensombreceu.

- Eu gostaria que, quando for embora, não olhe para trás.

Apesar de surpresa, Ângela sorriu mais uma vez, apertou a mão do professor, virou-se e começou a caminhar pela calçada, em direção à estação do metrô.

Achou aquele pedido bastante estranho. “Será que, se eu olhar para trás, o verei se esfumaçar e desaparecer no ar? Ou se transformar num sapo? Terá ele sido fruto de minha imaginação?” Continuou seu caminho, fazendo força para não olhar por cima do ombro. Afinal, aquele enorme cabedal de conhecimentos sobre a cultura russa que adquirira naqueles dias não era fantasia. Foi realidade pura, como os imensos prédios da Paulista que se coloriam de dourado ao pôr-do-sol de um sábado e testemunhavam a passagem de Ângela.

Poucos meses depois, ela recebeu uma carta do Rio Grande do Sul. Comunicava a morte de Dimitri. Seu filho havia encontrado no meio dos papéis do professor um bilhete pedindo-lhe que escrevesse a Ângela, dizendo que ele tinha certeza terem sido aqueles dias que passaram juntos no Masp os mais felizes do seu fim de vida e que lhe era muito grato por ela ter lhe propiciado a oportunidade de, pela última vez, transferir a alguém conhecimentos como professor, atividade que tanto amou e que a ela tanto se dedicou por toda a sua existência.

O filho do professor informou também que Dimitri, viúvo há muito tempo, sofria de câncer, e já com seus dias contados e contra o desejo dos filhos e dos médicos, insistiu em viajar para São Paulo para conhecer de perto o tesouro do Kremlin, que também só conhecia pelos livros. Queria se despedir da Rússia.

À medida em que lia a carta, Ângela chorava de emoção, as lágrimas molhando o papel e borrando as letras. Ambos, Ângela e Dimitri, haviam proporcionado um ao outro algo que jamais esqueceriam.

Ao final, lhe era comunicado um número de registro para retirada de uma encomenda nos Correios de Salvador.

Ângela ainda guarda, sobre uma mesinha de jacarandá na sala de sua casa, um belo ícone de São Jerônimo do século 16, presente póstumo do professor Dimitri que ele encomendara na Rússia anos atrás. Ao lado, estão dispostos os três volumes do livro que Ângela quase vendeu para poder ir à exposição do Masp e que até então eram os seus únicos objetos preciosos e motivos de orgulho.

Carta (miniconto)

“Minha querida filha:

Fiquei muito satisfeito ontem ao não receber a carta que você não me enviou. Você não imagina o contentamento que senti ao não pegar aquele envelope que a sempre prestimosa atendente de enfermagem responsável pela minha ala não me veio entregar. E o ar de felicidade dela, que é o mesmo de todas as vezes que não me entrega as cartas que você não me escreve.

Foi um dia maravilhoso, de aniversário, com direito até a um lindo bolo que recebi na mão direita, para comemorar. Afinal, faço hoje 70 anos de idade e cinco de casa. O pessoal daqui é muito agradável e me trata muito bem, a pão e água, imagine se mereço! Todo início de noite, dão-me uma pílula para eu poder dormir até o dia seguinte.Tenho minha cama de alvenaria coberta com um colchonete. Não tem lençol nem coberta. Mas, quem precisa de coberta? Quando faz frio, a gente fica debaixo do colchonete, com o braço servindo de travesseiro. Na maioria do ano, o calor é forte, eles deixam a gente andar sem roupa, para não ficar lavando toda hora. Pelo menos, economiza-se a água da cisterna que o caminhão vem repor todo mês. E a economia ainda é maior, sabe? A gente só toma um banho por semana, e de lata. É refrescante!

Que mais eu poderia querer, onde mais eu quereria viver o resto de minha vida? Só Deus sabe quanto tempo mais terei a felicidade de compartilhar este lugar com todos esses meus amigos e amigas. Dois meses atrás, durante a visita periódica, o médico assegurou que minha saúde é boa, eu ainda vou durar bastante, o que me deixou muito feliz, você não imagina o quanto!

A convivência com meus colegas é meio difícil, reconheço, grande parte deles não gira muito bem, sabe como é, não? Quando não se põem a monologar pelos corredores escuros e pouco cheirosos, recolhem-se nos cantos a gritar e a chorar como se fossem crianças pequenas parece que o ambiente sombrio os faz lembrar do útero de suas mães até que as atendentes vêm com a sopinha rala, onde já amassaram uma pílula da que eu tomo inteira, para não prejudicar o organismo deles, coitados.

Outros já são muito velhos, quase não andam, passam os dias deitados, sussurrando com suas vozes fracas. Mas são capazes de cuidar de suas vidas, de sua higiene pessoal. Pelo menos, é o que as atendentes acham, pois só limpam as camas e lavam as enfermarias a cada sábado.

Eu sou um dos poucos que não são velhos demais nem birutas. Nós dois sabemos disso, não é? Aliás, nós dois e aquele doutor a quem você pagou com minha pensão de três meses para ele dar aquele laudo. Ele foi muito perspicaz e soube bem diagnosticar o meu problema, e por telefone. Nem exame de corpo presente ele fez. Bom menino!

Você foi muito gentil em ter me deixado aqui. E muito feliz ao ter escolhido este abrigo, ou diria asilo? Na verdade, você nem escolheu. Com a sua capacidade de percepção e sensibilidade, na verdade você abriu o catálogo e a primeira instituição que aparecia na página você apontou. Letra ‘A’. Sua mãe, mesmo lá em cima, deve ter ficado orgulhosa do seu gesto, permitir eu ter um cantinho tranqüilo, sossegado, só meu, para viver em paz até o dia em que me reunirei a ela.

Espero que todos estejam bem em casa, você, seu marido, que tão bem assumiu a minha loja quando casaram, e meus três netinhos, que não conheço e que não conhecerei quando vocês não virão me fazer uma visita.

Bem, querida filha, creio que esta carta que não estou escrevendo e que você não vai receber já está se prolongando demais. Não quero tomar o seu precioso tempo. Nem também quero aborrecer as prestimosas atendentes que não me trouxeram o papel e a caneta para eu não escrever estas linhas cheias de saudades e gratidão.

Um beijo do seu velho, doente porém longevo pai.