quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Frases cínicas

# “Há gente que vem ao mundo a passeio e gente que vem ao mundo a serviço. Eu, por exemplo, vim a passeio, mas acharam por bem me dar serviço para fazer."

# “A coisa está tão preta, tão negra, que tem um ceguinho lá na rua que tem medo de sair de casa.”

# “Cultura popular é uma das coisas mais democráticas que conheço: o povão faz e a elite consome.”

# “Telefone tocando de madrugada... ou é engano ou sua família diminuiu.”

# “As fotografias não mentem: eu sou duas pessoas. Pelo lado direito sou um, pelo esquerdo, sou outro. Mas o raio do nariz é o mesmo.”

# “Como dizia um poeta egocêntrico, parodiando o outro: ‘Deus, ó Deus! Onde estou que não respondo!”

# “O casal era tão viciado em shopping que, quando os filhos nasciam, não lhes botava nomes. Botava etiquetas.”

# “Era um autêntico nobre: quando criava barba, ficava à cara de D. Pedro II. Quando raspava, ficava à bunda do imperador.”

# “Espelho, espelho meu! Alguém escova os dentes mais feio do que eu?”

# “Depois de certa idade, o dicionário serve para a gente se lembrar do que nunca soube.”

# “Nem toda mulher de olhar dissimulado deve ser uma Capitu. Mas é bom, de vez em quando, reparar a cara dos meninos.”

# “O domingo está chato? Sem perspectivas de melhorar? Ânimo! Vá almoçar com a sua sogra.”

# “Em caso de estupro de gay, à vítima cabe o ânus da prova.”

# “O amor platônico engravida a mulher de ilusões.”

# “Ao contrário do que diziam os juristas romanos, a bunda vicia.”

Camone, bói!

Estou deitado de bruços num meio de uma touceira de banana. A posição é muito incômoda, mas fico coberto. Consegui chegar aqui sem ser visto, em três pulos, vindo de lá de trás da velha jaqueira. Meu corpo está colado ao chão, a cabeça levemente erguida, os olhos perscrutando o território inimigo. A mão direita segura firme o cabo do revólver, o dedo comprimindo nervosamente o gatilho.

O calor é demais. O sol a pino me queima a cabeça e o pescoço. Perdi o chapéu há pouco, correndo no meio do pasto por entre os galhos espinhentos dos maricás. A camisa, um tanto rasgada, está encharcada de suor, que me escorre desde testa, ardendo os olhos. Não posso enxugá-los com a mão. Qualquer movimento em falso será fatal. Se o bandido me descobre, sou um homem morto.

Tento controlar a respiração, ofegante pelo esforço e pela tensão. Talvez por um pouco de medo, também.

Acho que o miserável está escondido no meio daquele mato, a uns cinqüenta metros à minha frente. Entre nossas posições, mais para a direita, há um tronco de cajazeira, caído e cortado, grande bastante para me abrigar. Se conseguir chegar lá, posso rastejar até a plantação de mandioca. Então, dou a volta no terreno e pego o sacana por trás.

Fazendo planos, permaneço com o olhar fixo nos arbustos lá na frente, a cabeça encostada na bananeira, esperando o momento certo para me mover. De repente, pelo canto do olho vejo um minúsculo vulto escuro passar perto do meu rosto. Não dou atenção, não posso desviar a vista do esconderijo do bandido. Logo, outro vulto segue o primeiro, e mais outro, e mais outros... FORMIGAS!!

Porra! Estou em cima de um formigueiro!!!

Desesperado, consigo dar um salto de sapo e caio deitado mais adiante, em terreno aberto. Rolo e rastejo rapidamente em direção ao tronco caído, ralando o peito e os braços nos torrões secos do massapê.

O coração dispara. Fico com os sentidos atentos, procurando perceber por qual lado o bandido vai aparecer. Com certeza ele já me descobriu e vem para me matar. Puxo o cão do revólver para trás.

Nada. Tudo quieto, ele não me descobriu. Então, me acalmo, desarmo o revólver e vou até a ponta do tronco arriscar uma olhadela lá na frente. Ninguém à vista. Bem, agora é só ganhar as mandiocas, dar a volta pela casa de farinha e retornar por trás do pistoleiro.

Já estou do outro lado da casa. Devem ter se passado uns bons vinte minutos desde que saí do bananal. Até aqui, tudo bem. Nenhum sinal do bandido. Me arrasto, contornando a ruma de lenha seca. A posição é ótima. O campo está livre.

Há uma pedra de bom tamanho entre mim e os arbustos onde o bandido deve estar escondido. Mais uma vez, vou rastejando, devagar. Não tenho pressa. Ele deve estar vigiando o outro lado, nem imagina que vou chegar por trás. Rarará! Sou mais inteligente que ele.

Junto à pedra, faço uma última revisão no revolver. Tudo OK! Munição bastante para um longo tiroteio. Mas, nem vai precisar. Será um tiro só, certeiro, se ele não se render. Daqui que ele se vire, eu toco fogo.

Bem, lá vou eu. Tenho que ficar calmo, respirar o mínimo possível. Não pode haver qualquer ruído, senão sou um homem morto.

Estou chegando. O revólver está pronto, puxo de novo o cão para trás, o dedo firme no gatilho. Olha lá, vejo até a ponta do chapéu do desgraçado. Que surpresa ele vai ter!

Meu coração parece que vai pular da boca. Uma cólica repentina me “rasga” a barriga. Respiro fundo. Decidido, os olhos atentos, começo a me levantar para o assalto.

- CAMONE, BÓI!

Quase me borrei todo quando ouvi aquela voz atrás de mim e senti um cano duro encostado nas minhas costas.

- Porra! Vá meter susto na puta que pariu! O que você está fazendo aí atrás? Você deveria estar deitado ali no mato - grito, indignado.

- Rarará. Ganhei, te peguei de novo - zombou o “bandido”.

- Que banana! Onde é que você se meteu esse tempo todo? Estou há horas me arrastando pelo mato à sua procura... E aquele chapéu? - reforço a indignação.

- Quem mandou me procurar lá longe no pasto? Eu estava no bananal, e aí você passou a porteira em direção aos maricás. Então, fui pra casa merendar. Como você estava demorando de chegar, vim lhe procurar. Encontrei você rastejando por detrás da pedra. Aí, eu lhe peguei. E esse chapéu velho não é meu, alguém o perdeu aí. Amanhã, vou ser bandido de novo - disse meu primo.

- Aqui pra você! Já tem três dias que sou mocinho. Não quero mais. Ou agora vou ser o bandido ou não vou mais brincar - falei, retado da vida, enfiando o revólver de espoleta no coldre.

- Problema seu. Você não sabe perder. Vamos embora para casa que já é hora do almoço e sua mãe deve estar preocupada com a gente.

Um conto russo

É sabido que a arte afasta o artista do convívio social, por força do seu trabalho. A sua obra, sim, aproxima os demais mortais na medida em que, exposta, atrai para um mesmo espaço pessoas das mais diversas procedências, idades e interesses para apreciá-la. Alguns são curiosos, outros, conhecedores, e ainda há o grupo dos apaixonados. Esses últimos, apesar de minoria, são pessoas que muitas vezes não medem sacrifícios para ter ou ver de perto o objeto de sua paixão.

Ângela fazia parte dessa última categoria. Moça de hábitos simples, sem muitos recursos, nascida no interior do estado, era professora do ensino público em Salvador. Estudiosa da cultura de sua terra, só vivia com livros debaixo do braço. Mas tinha uma predileção: a arte russa. Era capaz de passar horas em depósitos insalubres de sebos a garimpar livros sobre a Rússia. Correspondia-se com inúmeros livreiros do país, de quem recebia informações da existência de obras sobre o tema, não obstante não tivesse condições de adquirí-las. Contentava-se com cópias xerocadas de partes que lhe interessavam e que o pessoal lhe mandava.

Certa feita, escarafunchando o depósito de um sebo em Salvador, encontrou um livro que há anos procurava, e que o próprio dono do sebo dizia não possuí-lo. Em três volumes, a obra fora escrita por um embaixador francês na corte russa e continha profundas e perspicazes observações e análises sobre o modo de vida e as artes da Rússia ao tempo do czar Nicolau II, com ilustrações maravilhosas.

A batalha maior não foi remexer pilhas e pilhas de livros usados, empoeirados, e sim pechinchar com o dono do sebo um preço razoável que ela pudesse pagar. Por fim, acertou-se um valor que seria dividido em algumas prestações, tendo Ângela passado dificuldades nos meses seguintes para ter o prazer de ler, e reler, e reler aquela obra monumental. Mas, o orgulho maior era ter acesso àquelas informações.

Um dia, ela soube pelos jornais que, na quinzena seguinte, o Museu de Arte de São Paulo, o Masp, iria abrigar uma exposição com parte do acervo artístico do Kremlin. Ângela ficou excitada com a notícia, e se pôs a planejar uma viagem à capital paulista para apreciar de perto objetos de sua adoração que só conhecia através dos livros.

Logo, a triste realidade caiu sobre si como um balde de água gelada retirada do Rio Moscou: não tinha dinheiro para a empreitada. Mesmo assim, passou noites sem dormir, ansiosa, estudando uma maneira de conseguir os recursos necessários. Uma oportunidade dessas ela não poderia desperdiçar. Era mais fácil ir a São Paulo do que à Rússia.

Resolveu então vender o único bem valioso que possuía, aquele livro raro que adquirira com tanto sacrifício. Procurou o dono do mesmo sebo onde o comprara, que lhe propôs recomprar por um preço bem abaixo do que ela tinha desembolsado na época. Aquele dinheiro mal daria para as passagens de ônibus. E as demais despesas com a estadia?

Desolada, botou os três volumes debaixo do braço e voltou para casa. Ao ver a frustração estampada no rosto de Ângela, seu pai ainda brincou com ela, para desanuviar o momento, comentando com o outro filho:

- Qual o problema com “Sovaco Ilustrado”?

Ao saber da dificuldade da filha, ele prontificou-se a conseguir o dinheiro para a viagem. Não seria, pois, necessário que ela se desfizesse daquele livro que tanto amava e que tanto sacrifício fizera para adquiri-lo. Mas, ao voltar, ela teria que dar um jeito de reembolsá-lo.

E então, feliz e satisfeita, lá se foi Ângela para a capital paulista a bordo de um ônibus comercial, numa viagem de trinta e duas horas, com várias paradas pelo caminho. Ficaria alojada no apartamento de uma amiga para quem havia telefonado antes do embarque, “convidando-se” como hóspede por uma semana. Economizaria as despesas com hotel, guardando o dinheiro para atividades paralelas à exposição do Masp. E o que São Paulo mais tinha eram eventos culturais dignos de visita.

Durante os dois primeiros dias da exposição, ela percorreu avidamente os salões do museu, extasiada com os objetos, jóias e ícones da arte russa e com os quadros de pintores famosos pertencentes ao acervo do Kremlin. Depois, ela se deteria em cada seção para uma apreciação mais minuciosa.

No início da manhã do terceiro dia, mal as portas do Masp foram abertas, Ângela já estava em frente àquelas peças que eram a sua paixão. A certa altura, sentiu a presença de alguém atrás de si. Ao se virar, deparou-se com um senhor idoso, alto, bem magro, cabelos brancos e bigode grisalho, os olhos de um azul profundo. Estava elegantemente vestido com um terno preto, e uma flor amarela destacava-se na lapela.

- Desculpe, senhorita, mas a tenho notado aqui todos os dias, sempre demonstrando um ar de grande interesse e êxtase.

O ancião tinha o sotaque cerrado, meio sulista, meio estrangeiro. De cara, Ângela achou-o simpático, e logo estavam conversando como se já se conhecessem há anos. Ela contou-lhe o motivo de seu interesse pela exposição e que até fizera sacrifício para vir da Bahia.

Ele lhe revelou morar no Rio Grande do Sul desde quando, ainda pequeno, veio da Rússia com os pais e irmãos, fugindo dos horrores da Revolução Bolchevique no início do século passado. Na pouca bagagem que puderam carregar vieram alguns livros que seus pais fizeram questão de trazer para que os filhos não se esquecessem a sua terra natal.

Assim, o professor Dimitri - pois era professor de História Universal numa cidade do interior gaúcho - cresceu e vivei muito ligado às suas raízes eslavas, apaixonado pela cultura russa. Por esse motivo, disse-lhe ele, ficara impressionado com o interesse e extrema atenção com que aquela moça brasileira, sem feições européias, examinava as peças de arte da exposição.

Por todo aquele dia, e pelos subseqüentes, Ângela foi ciceroneada pelo professor Dimitri, que lhe deu verdadeiras aulas sobre a arte russa. Ensinamentos que Ângela jamais conseguira ou iria conseguir encontrar nos livros. Até na hora do almoço eles passavam juntos, conversando, em um restaurante comercial na galeria entre a Avenida Paulista e a Alameda Santos, perto do Masp. As despesas eram divididas, por insistência de Ângela e para frustração do professor Dimitri, que queria proporcionar mais gentilezas àquela mocinha do interior da Bahia que viera a São Paulo por amor à cultura do seu distante país.

Às vezes, ele tinha a voz entrecortada, fazendo uma pausa para a entrada de ar nos pulmões. Outras vezes, ele procurava disfarçadamente um banco para descansar nas longas caminhadas pelo museu.

No último dia da exposição, as portas do Masp já encerradas, Ângela e o professor Dimitri se despediam no calçadão em frente.

- Eu gostaria, Ângela, de lhe fazer dois pedidos - àquela altura, a intimidade havia suprimido o tratamento “senhorita”, embora a moça ainda mantivesse o “professor”.

- O que o senhor me pedir e eu puder fazer, o farei com imensa alegria. Não imagina como me sinto gratificada pelos ensinamentos que me passou. Esses dias foram maravilhosos. Jamais vou esquecer.

- Primeiro, gostaria de lhe dar um beijo.

Ângela corou do dedo do pé à raiz dos cabelos. Jamais havia sido beijada por homem algum. Seus lábios ainda eram virgens. E teriam que ser desvirginados logo por um homem bem mais velho, com idade de ser seu avô? Paciência. Afinal, o bem que ele lhe proporcionara durante aqueles dias merecia alguma retribuição. Que fosse um beijo, então! Mas, e o outro pedido, o que seria? Tensa, Ângela fechou os olhos e esperou.

O professor Dimitri segurou-a gentilmente pelos braços e deu-lhe um beijo em cada face.

Aliviada, ela abriu os olhos, sorriu e perguntou:

- E o segundo pedido, professor?

Ela percebeu que o semblante do ancião ensombreceu.

- Eu gostaria que, quando for embora, não olhe para trás.

Apesar de surpresa, Ângela sorriu mais uma vez, apertou a mão do professor, virou-se e começou a caminhar pela calçada, em direção à estação do metrô.

Achou aquele pedido bastante estranho. “Será que, se eu olhar para trás, o verei se esfumaçar e desaparecer no ar? Ou se transformar num sapo? Terá ele sido fruto de minha imaginação?” Continuou seu caminho, fazendo força para não olhar por cima do ombro. Afinal, aquele enorme cabedal de conhecimentos sobre a cultura russa que adquirira naqueles dias não era fantasia. Foi realidade pura, como os imensos prédios da Paulista que se coloriam de dourado ao pôr-do-sol de um sábado e testemunhavam a passagem de Ângela.

Poucos meses depois, ela recebeu uma carta do Rio Grande do Sul. Comunicava a morte de Dimitri. Seu filho havia encontrado no meio dos papéis do professor um bilhete pedindo-lhe que escrevesse a Ângela, dizendo que ele tinha certeza terem sido aqueles dias que passaram juntos no Masp os mais felizes do seu fim de vida e que lhe era muito grato por ela ter lhe propiciado a oportunidade de, pela última vez, transferir a alguém conhecimentos como professor, atividade que tanto amou e que a ela tanto se dedicou por toda a sua existência.

O filho do professor informou também que Dimitri, viúvo há muito tempo, sofria de câncer, e já com seus dias contados e contra o desejo dos filhos e dos médicos, insistiu em viajar para São Paulo para conhecer de perto o tesouro do Kremlin, que também só conhecia pelos livros. Queria se despedir da Rússia.

À medida em que lia a carta, Ângela chorava de emoção, as lágrimas molhando o papel e borrando as letras. Ambos, Ângela e Dimitri, haviam proporcionado um ao outro algo que jamais esqueceriam.

Ao final, lhe era comunicado um número de registro para retirada de uma encomenda nos Correios de Salvador.

Ângela ainda guarda, sobre uma mesinha de jacarandá na sala de sua casa, um belo ícone de São Jerônimo do século 16, presente póstumo do professor Dimitri que ele encomendara na Rússia anos atrás. Ao lado, estão dispostos os três volumes do livro que Ângela quase vendeu para poder ir à exposição do Masp e que até então eram os seus únicos objetos preciosos e motivos de orgulho.

Carta (miniconto)

“Minha querida filha:

Fiquei muito satisfeito ontem ao não receber a carta que você não me enviou. Você não imagina o contentamento que senti ao não pegar aquele envelope que a sempre prestimosa atendente de enfermagem responsável pela minha ala não me veio entregar. E o ar de felicidade dela, que é o mesmo de todas as vezes que não me entrega as cartas que você não me escreve.

Foi um dia maravilhoso, de aniversário, com direito até a um lindo bolo que recebi na mão direita, para comemorar. Afinal, faço hoje 70 anos de idade e cinco de casa. O pessoal daqui é muito agradável e me trata muito bem, a pão e água, imagine se mereço! Todo início de noite, dão-me uma pílula para eu poder dormir até o dia seguinte.Tenho minha cama de alvenaria coberta com um colchonete. Não tem lençol nem coberta. Mas, quem precisa de coberta? Quando faz frio, a gente fica debaixo do colchonete, com o braço servindo de travesseiro. Na maioria do ano, o calor é forte, eles deixam a gente andar sem roupa, para não ficar lavando toda hora. Pelo menos, economiza-se a água da cisterna que o caminhão vem repor todo mês. E a economia ainda é maior, sabe? A gente só toma um banho por semana, e de lata. É refrescante!

Que mais eu poderia querer, onde mais eu quereria viver o resto de minha vida? Só Deus sabe quanto tempo mais terei a felicidade de compartilhar este lugar com todos esses meus amigos e amigas. Dois meses atrás, durante a visita periódica, o médico assegurou que minha saúde é boa, eu ainda vou durar bastante, o que me deixou muito feliz, você não imagina o quanto!

A convivência com meus colegas é meio difícil, reconheço, grande parte deles não gira muito bem, sabe como é, não? Quando não se põem a monologar pelos corredores escuros e pouco cheirosos, recolhem-se nos cantos a gritar e a chorar como se fossem crianças pequenas parece que o ambiente sombrio os faz lembrar do útero de suas mães até que as atendentes vêm com a sopinha rala, onde já amassaram uma pílula da que eu tomo inteira, para não prejudicar o organismo deles, coitados.

Outros já são muito velhos, quase não andam, passam os dias deitados, sussurrando com suas vozes fracas. Mas são capazes de cuidar de suas vidas, de sua higiene pessoal. Pelo menos, é o que as atendentes acham, pois só limpam as camas e lavam as enfermarias a cada sábado.

Eu sou um dos poucos que não são velhos demais nem birutas. Nós dois sabemos disso, não é? Aliás, nós dois e aquele doutor a quem você pagou com minha pensão de três meses para ele dar aquele laudo. Ele foi muito perspicaz e soube bem diagnosticar o meu problema, e por telefone. Nem exame de corpo presente ele fez. Bom menino!

Você foi muito gentil em ter me deixado aqui. E muito feliz ao ter escolhido este abrigo, ou diria asilo? Na verdade, você nem escolheu. Com a sua capacidade de percepção e sensibilidade, na verdade você abriu o catálogo e a primeira instituição que aparecia na página você apontou. Letra ‘A’. Sua mãe, mesmo lá em cima, deve ter ficado orgulhosa do seu gesto, permitir eu ter um cantinho tranqüilo, sossegado, só meu, para viver em paz até o dia em que me reunirei a ela.

Espero que todos estejam bem em casa, você, seu marido, que tão bem assumiu a minha loja quando casaram, e meus três netinhos, que não conheço e que não conhecerei quando vocês não virão me fazer uma visita.

Bem, querida filha, creio que esta carta que não estou escrevendo e que você não vai receber já está se prolongando demais. Não quero tomar o seu precioso tempo. Nem também quero aborrecer as prestimosas atendentes que não me trouxeram o papel e a caneta para eu não escrever estas linhas cheias de saudades e gratidão.

Um beijo do seu velho, doente porém longevo pai.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Encomenda (miniconto)

Encomendaram-lhe um romance. Ora, já havia publicado um que lhe tomara cinco anos de vida. Assegurara-lhe algum prestígio, mas dinheiro, nada. Nele, esgotara o assunto, não pensava mais em nada que pudesse servir de enredo tão espichado.

A vida passava rápido, as coisas aconteciam de maneira vertiginosa, já não lhe apetecia ficar sentado horas a fio, dias e dias, meses após meses, entra ano, sai ano, tecendo uma trama comprida com os mesmos personagens.

Não, não iria fazer isso de novo. Não tinha paciência. Sentia-se entediado. A partir de agora, suas histórias seriam rápidas, do tipo que as pessoas pudessem ler de uma sentada. Na viagem de ônibus de casa para o trabalho, na sala de espera do consultório médico, na fila do banco. Ou, até melhor, em locais bucólicos como o jardim da praça ou a areia da praia.

Coisas breves, concisas. Não aqueles enredos de linhas paralelas, que às vezes se aproximam mas só vão se encontrar mesmo lá longe, no infinito. Mudaria a geometria da sua escrita. Uma linha não seria mais uma linha cheia, contínua, interminável. Ela agora seria pontilhada: cada ponto, uma história inteira, acabada.

Decidido, pegou o envelope da editora, onde viera a carta de encomenda e o cheque de adiantamento — bem alentado, até —, rabiscou um “recusado, obrigado, mudou de ramo” e foi devolvê-la na agência dos Correios.

Agora, só escreveria contos curtos. Assim seria, pois!

Novidades (miniconto)

De manhãzinha, D Irene sentiu um forte incômodo. Pressão no peito, suor frio, pulsação alterada, ligeiro desconforto no estômago. Acordou de estalo. Era um sonho mau. Olhou o relógio, quase hora de levantar. E levantou para ir ao banheiro para as abluções matinais. Depois, na cozinha, preparou seu café da manhã. Frugal, como sempre. Desde a morte do marido ela vivia sozinha no apartamento. Aos 75 anos, ainda era forte e despachada o bastante para tomar conta de si.

Lavou a pouca louça, os talheres, arrumou a bolsa e saiu de casa. Iria dar seu passeio costumeiro pelas redondezas. Trancou o apartamento e dirigiu-se ao elevador, apertando o botão. Logo, ele chegou e a porta se abriu. Simplício, o antigo ascensorista, lá estava a postos, roupinha bem passada, o mesmo sorriso simpático nos lábios por baixo do bigode grisalho.

D. Irene se assustou. Espantada, deu um passo para trás e levou as mãos ao rosto.

— Seu Simplício, mas o senhor está morto! Morreu o ano passado...

Ainda com o sorriso cordial, como naqueles anos todos, o velho respondeu, num tom bondoso e compreensivo:

— A senhora também está, D. Irene. Eu vim lhe buscar.

E estendeu a mão, pegando no braço da anciã, conduzindo-a gentilmente para dentro do elevador.

D Irene deixou-se levar, surpresa mas sem reclamar. Simplício apertou um botão com um número de pavimento que não existia naquele edifício. A porta fechou e o elevador subiu. Mais calma, D. Irene perguntou, como costumava fazer naqueles anos todos:

— O que há de novo no prédio?

E Simplício começou a contar as novidades, o elevador subindo, subindo, subindo...

Reclusão (miniconto)

A chave virou na fechadura com o clique característico. Outra volta, outro clique. Félix girou a maçaneta, abriu a porta e mergulhou na penumbra do pequeno apartamento. Nunca deixava a luz acesa. Saía de manhã para trabalhar e não havia razão para gastar energia o dia inteiro.

Acostumara-se àquela recepção diária. Tudo escuro e silencioso em seu refúgio. Era a hora mais ansiada. Mas, bem que às vezes gostaria de encontrar a casa iluminada, alguém o esperando. Às vezes, bem dito, porque não era todo dia que Félix tinha paciência para conviver na rua, quanto mais dividir sua vida particular com outra pessoa. Já bastava o roça-roça, o esfrega-esfrega social a que era diariamente submetido nas obrigações profissionais. Quando punha o pé fora de casa, Félix se eriçava e se revestia de uma armadura para evitar o atrito.

Sua vida era bem rotineira, e ele fazia questão que assim fosse. Não tinha o menor interesse em mudar as coisas. Para ele, sair de casa era por obrigação de sobrevivência. Trabalho, compras, bancos. E o pior, gente!

Lá fora nada lhe interessava. Já a sua casa era o seu verdadeiro mundo. Um casulo que o resguardava de tudo e de todos, o útero materno de onde nunca deveria ter saído. De quando em vez, esse pensamento lhe passava à mente, e então um velho ressentimento contra a mãe aflorava: “Ela nunca deveria me ter parido. Foi sacanagem! Não me perguntou se eu queria sair de lá. Simplesmente, ela me expulsou de casa!”

Tal sentimento, que foi aumentando à medida em que os anos passavam, mesmo vivendo juntos, piorou quando a mãe lhe fez a segunda desfeita: morreu, deixando-o sozinho no mundo. Como vingança, não foi ao enterro. Ignorou os insistentes recados do pessoal do hospital para que tomasse as providências necessárias. “Ela que vá como indigente!”

Pegou todas as coisas da mãe, roupas, sapatos, objetos pessoais, jogou tudo pela janela do apartamento. Não se preocupou com as reclamações dos vizinhos contra aquela chuva de coisas velhas sobre área externa do prédio. Que se dessem por satisfeitos porque, se ele tivesse sabido antes que a mãe iria lhe fazer essa outra desfeita, ela teria ido junto.

A notícia do problema da mãe o pegara de surpresa no trabalho. Tinha sido tudo muito rápido. Alguém do hospital ligou dizendo que ela dera entrada em estado grave. Vizinhos a encontraram caída no corredor do edifício. Pela manhã ela estava bem, não havia se queixado de nada. E agora, aquilo!

Apavorado, Félix correu para o hospital, mas não pôde ver a mãe, internada em coma na UTI. Derrame violento. Se não morresse, disseram os médicos, poderia ficar em cima da cama pelo resto da vida. Félix voltou para casa, desesperado. De madrugada, a mãe morreu. Félix atendeu o telefone, mas não saiu de casa. Enterraram o corpo pela tarde.

Ele chorou até de madrugada, um pouco de saudade, outro tanto de mágoa, e mais outra parte de raiva. A certa altura, não sabia distinguir um sentimento dos outros. Nunca mais teria a mãe o esperando em casa, com a luz acesa. Nunca mais teria a sua companhia. O cordão umbilical fora cortado para sempre. Agora, era ele e o mundo, que detestava. No dia seguinte, ele deu uma faxina geral no apartamento. À noite, não havia um só resquício dela. Pairava apenas no ar um ressentimento redobrado.

Alguns anos depois, Félix não botou mais a cabeça fora de casa. Virou ermitão. Comunicou à repartição que não iria mais trabalhar e não deu justificativas. Achava que não tinha que fazê-lo. Detestava dar satisfação a quem quer que fosse. Odiava partilhar os seus problemas pessoais. Execrava que os outros se intrometessem em sua vida. Quando alguns colegas de trabalho vieram lhe visitar, saber o motivo da demissão e do desaparecimento, não os recebeu. Aliás, sequer abriu a porta, fingiu que não estava em casa. Isso havia acontecido também quando alguns vizinhos quiseram lhe prestar solidariedade pela morte da mãe.

A única pessoa que tinha acesso a ele era o zelador do prédio, que vinha pegar o lixo e a quem Félix incumbia, de vez em quando, de comprar alguns mantimentos e pagar as contas do condomínio, do gás e da luz, que era o mínimo. Assim mesmo, a comunicação se dava por uma fresta da porta, que nunca era aberta totalmente.

O tempo foi passando, Félix vivendo enclausurado, na penumbra. Nem sequer chegava à janela, sempre fechada. Um dia, ele não abriu a porta. O zelador, achando que aquele cara esquisitão finalmente resolvera sair à rua, acabando com a reclusão, se despreocupou e não insistiu. Foi pegar o lixo dos outros apartamentos.

No dia seguinte, Félix também não apareceu. No terceiro dia, um cheiro de coisa podre começou a exalar por baixo da porta. O zelador chamou o síndico e, com a ajuda de um vizinho, arrombaram o apartamento.

Encontraram Félix morto, deitado no sofá da sala, completamente nu e todo encolhido no escuro como um feto no útero da mãe. Na pia da cozinha, havia resquícios de papéis queimados. Eram os seus documentos e tudo o que o pudesse identificar.

A polícia levou o corpo para o necrotério. Dois dias depois, foi enterrado como indigente. Ninguém aparecera para reclamar o corpo. Após os coveiros jogaram a última pá de terra sobre o caixão barato, um cão vadio que por ali passava levantou a perna e urinou na tosca cruz de madeira onde estava inscrito um número qualquer, que não lhe dizia absolutamente nada.

Depois, continuou indiferente o seu caminho.

Velho pardieiro (miniconto)

O cheiro da fumaça precedeu de instantes os gritos de aviso. O velho sobrado pegava fogo. Era tão velho que só de pardieiro tinha meio século. A vizinhança acorreu à rua, a princípio curiosa, depois, preocupada com que uma fagulha viajasse no ar e o fogo se alastrasse pelas casas vizinhas. Mas o antigo prédio de três andares, uma outrora majestosa residência, mesmo em sua agonia, reinava isolado em seu terreno, afastado de tudo e de todos, como aliás sempre fora durante a sua existência. Até o fogo era só dele. Ali morara, em seus tempos de fausto, gente rica, vaidosa e preconceituosa, que jamais gostara de se misturar “àquela gentinha” que se fora achegando, construindo suas casas mais simples nas proximidades, até que o bairro deixou de ser nobre.

Enquanto se esperava a chegada dos bombeiros, amainada a intensidade das chamas, um dos vizinhos mais antigos, que testemunhara aquelas portas e janelas fechadas há muitos anos e que ninguém mais ali morava, resolveu entrar no sobrado para verificar a origem do fogo. Forçou com os ombros a porta da frente e mergulhou no interior.

Em meio à fumaceira, sob as madeiras que vergavam com o peso dos anos e o calor do braseiro, ele viu esvoaçantes fantasmas e assombrações de vaidades, orgulhos, nobrezas, histórias e tradições, lembranças, recordações, reminiscências, memórias desesperadas entre lamúrias e lamentos, que gritavam: “O que será de nós? Para onde vamos agora”. Enquanto isso, pelos esgotos, buracos, frestas e beirais fugiam ratazanas, morcegos, baratas, aranhas, formigas, percevejos, seus atuais habitantes, abandonando o velho barco à própria sorte.

O esportista (miniconto)

Até há pouco, Antenor era um homem bem disposto. Aposentado, acordava bem cedo, fazia suas caminhadas matinais em marcha forçada pelo bairro. Ia ao banco fazer pagamentos, não entrava na fila de idosos. De tarde, visitava o shopping para um papo com os amigos. Ao anoitecer, voltava a pé e passava na padaria para levar pão para casa. Jantava com a mulher, e então os dois sentavam para assistir televisão. Cedo, ele ia dormir, o corpo cansado.

Desde jovem, Antenor era um esportista. Foi exímio remador. Jogava futebol com os amigos, disputava torneios de basquete, praticava natação em piscina e no mar. Orgulhava-se de se manter sempre jovem e saudável, e gostava de dizer que o segredo de domar a idade estava na cabeça.

Mas, de uns tempos para cá, começou a assumir certas atitudes de velho, para desgosto da mulher. Ficou mole, preguiçoso, não mais saía de casa. Até o pão vinham entregar na porta. Criou barriga, perdeu a vaidade. A mulher o incentivava a desenvolver certas atividades na rua, mas ele se recusava. Os amigos lhe telefonavam, cobravam sua presença nas rodas vespertinas, e ele sempre dava uma desculpa ou outra. Até que pararam de lhe procurar.

A saúde declinou. Bastava o tempo mudar, pegava resfriados, vivia de nariz entupido. Nessas ocasiões, vestia o roupão de banho, enrolava o cachecol no pescoço e assistia televisão com os pés imersos em uma bacia com água quente, saboreando um chá de limão com alho. A mulher via aquilo tudo com tristeza.

― É..., meu velho está ficando velho ― dizia-lhe ela, mais como reprimenda.

Um dia ― tem pouco tempo ―, Antenor caiu em si. Achou-se ridículo no papel de ancião. Lembrou-se do seu glorioso passado de esportista, forte e sadio. E bonito. Vaidoso, sempre se achara uma figura de fina estampa. Resolveu mudar, sacudir a inércia. Naquele dia, despiu o roupão, tirou os pés da bacia, fez algumas flexões com os braços e as pernas e foi ao banheiro tomar um banho frio.

Pegou uma pneumonia e morreu dois dias depois.

Cinzas (miniconto)

Quarta-feira de Cinzas é o pior dia do ano. Triste e solitário. Ainda mais quando é chuvoso, friento, o vento gemendo nas frestas das janelas. Dia de lamber as feridas, de ser visitado por antigos e recentes fantasmas, de curar a ressaca física e a moral. Dia de se entrever futuros embates.

Com esses pensamentos lúgubres, ele zanzou o dia inteiro pela casa fria e vazia, remexendo as cinzas, tentando fechar as cicatrizes que porventura se tenham aberto nos dias de Carnaval. Nem o sono o protegia. Recordava situações embaraçosas, fatos desagradáveis, palavras mal ditas e, pior, mal entendidas. Era como uma depuração interna.

Qual a origem daquele remorso recorrente? Afinal, Carnaval não é isso? Fugir da realidade cotidiana e refugiar-se na fantasia? Carnaval não é fantasia? Pois, então...

Mas as cinzas continuavam a lhe toldar o espírito. Por longos cinco dias afastara-se do mundo, renegara a sua própria vivência, caíra na folia. Brincara, pulara, dançara, agarrara, fora agarrado, beijara, transara, bebera até cair. Por longos cinco dias assumira outra personalidade que não era a sua. Encarnara um personagem de ópera bufa, desempenhara um papel que agora desconfiava ter sido ridículo.

Perdera cinco dias de sua vida, que não mais seriam recuperados. Um hiato grande demais para ser preenchido. Crua e cruel seria a realidade dali para frente. O que dirão dele, quando botar a cara na rua de novo? Como virá, meu Deus, a quinta-feira? Cheia de cobranças, de compromissos, de responsabilidades que havia esquecido ou forçara a se esquecer.

A quarta-feira cinzenta, fria, chuvosa e dolorosa, se arrastaria penosamente até a quinta-feira, mais fatídica ainda. Então, resignado, ele botaria os óculos mais escuros que tinha em casa, abriria a porta da rua e mergulharia no desconhecido previsível.

Última cerimônia (miniconto)

Restava a Gonçalves pouco tempo de vida. O médico lhe dera, no máximo, dois meses. A doença, em fase aguda, já corroia as suas entranhas e provocava sintomas que não lhe permitiam quaisquer dúvidas sobre a iminência do desfecho. Porém, Gonçalves cultivava uma enorme curiosidade para saber como seria o seu velório. Quem iria comparecer, quem iria chorar sobre seu caixão, quais seriam os comentários dos presentes sobre a sua pessoa, a sua vida, os seus atos.

Ele era solteiro, mas tinha muitos parentes e uma gama enorme de amigos que fizera ao longo da vida. A sua fama era de ser muito solidário com todos e gostava de freqüentar tantos eventos e cerimônias quantos para tais fosse convidado. Enfim, Gonçalves era uma pessoa muito conhecida. Vaidoso, achava-se conceituado em vários círculos da sociedade.

Preocupado em deixar esta vida sem poder presenciar sua própria despedida e ouvir os aplausos, ele combinou a realização de uma prévia com seu amigo mais chegado, de toda confiança. Este, comovido com o dilema de Gonçalves, acedeu a seu pedido. Providenciou-se a divulgação pela cidade da notícia do pretenso falecimento, e um caixão foi comprado e entregue onde aconteceria o velório, a própria casa do falso defunto.

Já bastante debilitado pela doença e ajudado pelo amigo, Gonçalves vestiu-se a caráter, posicionou-se devidamente no caixão no meio da sala e aguardou os que viriam se despedir.

Apareceu muito pouca gente, uns poucos parentes, outros tantos amigos. Ninguém levou flores nem chorou sobre o caixão. E os comentários que o “defunto” ouviu sobre a sua pessoa não foram muito agradáveis. Gonçalves ficou frustrado, decepcionado, indignado!. Levantou-se do caixão, expulsou todos de casa e tomou uma resolução: quando verdadeiramente morresse ninguém deveria ser comunicado, partiria só. Quando soubessem, já teria ido.

O sonho (miniconto)

O sonho ficou tão comprido, tão esticado, espichou tanto que a sua textura se esgarçou, e então surgiram aqui e ali rasgos de claridade, nesgas de sonoridade, vestígios de materialidade, que ela percebeu que já não mais sonhava. Resolveu acordar. Abriu os olhos de supetão e emergiu na realidade. E esta a recebeu como se lhe aplicasse uma bofetada.

Atordoada, tentou voltar. Cerrou os olhos, procurou lembrar o que esteve sonhando, as últimas imagens, alguns borrões de fantasia, um fio de ficção que fosse. Inútil. A mente já se fechara às recordações oníricas.

O mundo real a sorveu em seu vórtice, e ela, rodopiando, foi jogada contra a plena consciência do que era a sua vida. Levantou-se da cama, foi ao banheiro. Pelo espelho não gostou do que viu. Desejou enfiar-se no vaso sanitário e puxar a descarga. O modo mais abjeto de sumir.

Deixou-se ficar ali por algum tempo, encarando a si mesmo, um resto de tarde entrando pelo basculante. Então, acendeu as luzes sobre a pia e começou a se maquiar. Tratava a vida como um teatro e aquele era o seu camarim. Talvez a persona a protegesse do que havia lá fora. Ou dentro de si mesma. “Ora, o que importa, é tudo a mesma merda!”

Vestiu-se, pegou a bolsa e saiu de casa, mergulhando na noite. Algum cliente a esperava em alguma esquina da cidade.

Passos na escada (miniconto)

Gabriel havia se mudado recentemente. Para ter mais sossego em seu trabalho de escritor e também por razões econômicas, transferira-se para um bairro mais central, com aluguéis bem baratos, e onde a casas, antigas, eram menores e algumas delas até geminadas. Como a que Gabriel passou a morar. Igual às suas vizinhas, era estreita e tinha dois andares. Na parte de baixo, havia a sala, um banheiro e a cozinha, ligados um corredor lateral estreito. Entre o banheiro e a cozinha ficava a escada de.madeira que ligava os dois pavimentos. O andar superior era ocupado pelo quarto de dormir, na frente, outro banheiro, o vão da escada e uma saleta nos fundos, onde Gabriel instalou seu escritório. Ali ele passava a maior parte da noite, quando chegava do trabalho, lendo, escrevendo seus textos, fazendo seus estudos, não raro varando a madrugada. Vez em quando, descia à cozinha para se refrescar do calor com um copo de água gelada.

Certo feita, por volta das nove horas ― ele havia chegado mais cedo em casa ―, Gabriel ouviu passos na escada. Eram lentos, cadenciados, como os de um idoso com problemas de locomoção. Assustado, Gabriel arriou o livro sobre a escrivaninha e dirigiu-se ao corredor, acendendo a luz do patamar para ver quem vinha subindo. Ninguém vinha subindo. Arrepiado, ele ainda desceu um lance para confirmar. A escada estava vazia. Ele voltou para o escritório, certo de que talvez a sua imaginação de escritor estivesse indo longe demais.

Na noite seguinte, aconteceu de novo. Os mesmos passos, a mesma cadência, a mesma constatação de que ninguém subia a escada. Mas o medo foi maior. Gabriel ficou assustadíssimo, e passou a noite em claro, fechado em seu quarto, como se uma simples porta trancada tivesse o dom de barrar a visita de uma assombração ou do que aquilo fosse.

Pela manhã, ao sair para o trabalho, arrasado por uma noite insone e sobressaltada, Gabriel encontrou-se com a sua vizinha do lado, uma velha senhora, e contou-lhe o que havia se passado. Ela então lhe disse que, em sua casa, a escada dava para a mesma parede da escada de Gabriel, e que ela costumava se recolher sempre às nove horas. Era o som dos seus passos que, subindo devagar para o seu quarto, reverberava pela parede comum e passava para o outro lado. E a velha senhora ainda lhe fez um pedido:

― O senhor, quando usar a escada no meio da noite, ande sem sapatos. Às vezes eu acordo assustada pensando que é o meu finado marido que vem chegando para me buscar.

O homem e seus livros (miniconto)

Ramiro Jatobá vivia sozinho desde que ficara viúvo. Professor aposentado, raramente saía de casa, apenas por necessidade. O mundo lá fora não mais o atraía, achava-o sem graça. Havia passado boa parte de sua existência tentando incutir um pouco de cultura humanística na cabeça dos alunos. Poderia ter tido melhores resultados se as cabeças não fossem tão duras e tão desatenciosas, costumava ele dizer. Lembrava-se de uma máxima de Einstein: “A mente que se abre a uma nova idéia jamais volta ao seu tamanho original”.

Recolhera-se resignado à vida particular, onde os únicos companheiros eram os livros que se alinhavam nas estantes de sua biblioteca. Amava-os como se fossem filhos, que, aliás, nunca teve. Mais que isso, eles eram seus amigos de todas as horas.

Entretanto, quando se sentia muito só, Jatobá tinha o hábito de conversar com um interlocutor imaginário que, como tal, era paciente e muito bom ouvinte. Julgava-o o melhor discípulo que jamais tivera. Costuma-se dizer que maluco é quem fala sozinho. Nada mais inverossímil! Pessoas muito solitárias costumam encetar longas conversas consigo mesmo, criando um figura ilusória para com ela dialogar e assim melhor expor seus pontos de vista.

Jatobá não era maluco nem excêntrico, era apenas solitário. Não monologava, dialogava. E nessas horas sucedia que o assunto era um só, os livros. Gostava de discorrer sobre um determinado autor, uma obra ou sobre um tema que lhe merecia a atenção. Outras vezes, falava orgulhosamente do seu acervo.

Sentado na poltrona de leitura, onde passava grande parte dos dias e das noites, ele costumava dizer ao seu imaginário amigo, os olhos brilhando:

— Meu caro, o que você vê enfileirados ali nas estantes não é uma aglomeração indistinta, inerte. É um conjunto vivo de personalidades. Cada livro tem a sua individualidade, suas características próprias. Cada um com a sua capacidade de transmitir uma mensagem diferente, à sua maneira.

Quedava-se um instante em silêncio, e depois continuava, apontando:

— Repare nas formas: uns volumes são altos, outros baixos; uns finos, outros alentados. Uns têm cores alegres, outros as têm sóbrias. Mesmo os encadernados, vistos de longe parecem iguais, gêmeos. Mas daqui eu distingo cada um deles. Se você chegar mais perto, verá que seus dorsos duros apresentam palavras dispostas diferentemente, formando os nomes dos autores e os títulos. Todavia, prefiro deixá-los ao natural, como saíram do prelo. Só encaderno os que estão em estado precário.

A essa altura do discurso, Jatobá levantava-se e se aproximava de uma estante. Corria carinhosamente o dedo pelo lombo de um livro como se fosse o rosto de uma mulher.

— Uns têm seus títulos escritos de cima para baixo, outros de baixo para cima. Não importa, basta você inclinar a cabeça para um lado ou para o outro. De qualquer maneira, eles são o que são.

Voltava ao seu lugar na poltrona.

— E a diversidade de cores, meu amigo: veja que elas quase não se repetem. Da maneira que você dispuser os livros, seja por qual ordem for, por autor, por assunto, por origem e idioma, sempre haverá, por exemplo, um dorso branco entre dois encarnados, ou um verde ao lado de um amarelo pálido ou de um marrom. Exemplares de cores iguais juntos são tomos de um mesmo livro, de uma coleção ou de enciclopédia.

Fazia outra pausa e concluía, com os olhos brilhando:

— O mais importante, no entanto, é o conteúdo de cada um deles. Uns ensinam, outros informam, aqueles explicam. Uns divertem, outros têm a capacidade de nos deixar reflexivos, perplexos frente ao conhecimento humano.

Pegava o volume que deixara de lado com a chegada do visitante, arrematando:

— E a sensação de bem-estar que a leitura deles proporciona, meu caro, é indescritível. Indescritível!

Dito isso, Ramiro Jatobá voltava a mergulhar na leitura e o seu interlocutor retirava-se discretamente, como convém a um personagem inexistente.

O cheque (miniconto)

Faltavam quinze minutos para o banco fechar. Severino entrou pela porta giratória do estabelecimento e dirigiu-se ao caixa. O salão estava vazio, mas no balcão alguns funcionários tocavam suas obrigações diárias. Na parede atrás, um relógio marcava as horas.

O rapaz do caixa contava uma pilha de notas. Severino encostou e retirou um cheque do bolso da camisa. A folha estava dobrada e um tanto amassada. Sinal de que o cheque havia sido manuseado algumas vezes. A própria roupa de Severino estava amassada. Havia saído do trabalho. Severino espichou o cheque com a mão no tampo do balcão e o apresentou.

— Um momento, por favor! O senhor não vê que estou contando o dinheiro? Agora, vou ter que recomeçar.

Severino recolheu o cheque e quedou-se a olhar o rapaz contar a pilha de cédulas. Gastara os últimos trocados nos dois ônibus que pegara para o centro da cidade. Agora, ia sacar o dinheiro de seu primeiro salário em vários meses de desemprego e voltar para casa. A despensa há muito estava vazia, mas a família teria algo para comer hoje. Paciência, então.

Poucos minutos depois, contadas umas centenas, não se sabe quantas, de notas, um colega do caixa chegou por trás e entregou-lhe um pacote de papéis, dizendo alguma coisa em voz baixa, que Severino não conseguiu ouvir.

O rapaz virou-se, aborrecido.

— Poxa, eu não consigo terminar de contar esse dinheiro!

Pegou o pacote da mão do colega, com visível má vontade, e colocou-o na gaveta. Juntou de novo as notas e recomeçou a contá-las cuidadosamente, uma por uma, como se receoso de que lhe fossem escapar.

Severino olhou o relógio à sua frente. Minutos já haviam decorrido. Começou a ficar preocupado. Aguardou mais um pouco, alisou o cheque e empurrou-o devagar e cuidadosamente em direção ao caixa.

O rapaz levantou o rosto, lívido, e falou em um tom mais forte.

— Não já disse ao senhor para esperar? Não está vendo que estou contando o dinheiro?

Severino sentiu a rudeza na fala do rapaz e balbuciou, humilde:

— É que o tempo está pass...

O rapaz nem deixou ele terminar:

— Se o senhor está com pressa, se dirija ao outro caixa.

Severino olhou para o lado.

— Mas não tem ninguém no outro caixa...

— Então, o senhor aguarde!

E tornou a juntar o dinheiro, recontando nota por nota.

Lá na parede, o ponteiro dos minutos continuava seu percurso inexorável.

O caixa já contara mais da metade da pilha de dinheiro quando se ouviu a voz do tesoureiro, lá atrás:

— Joel, se adiante com essa contagem aí, para fechar logo o caixa.

— Assim não é possível! Como se pode trabalhar direito sendo interrompido a toda hora? Eu sei das minhas obrigações!

A voz irritada do caixa, respondendo ao tesoureiro, ressoou pelo ambiente. O tesoureiro levantou a cabeça, e outras cabeças se viraram, mas logo voltaram à posição anterior. Cada um cuidava do próprio serviço.

Mais uma vez, o caixa juntou as notas e recomeçou a contagem.

Com pouco, o ponteiro maior do relógio encostou no 12. Mais que rápido, Severino outra vez empurrou a folha de cheque em direção ao rapaz. Ao mesmo tempo, do relógio veio o som do “plim” característico da hora cheia.

O caixa levantou o rosto para Severino e decretou:

— Expediente encerrado! Volte amanhã.

Trancou a gaveta, arriou a janela de vidro, pegou o maço de dinheiro e se dirigiu à tesouraria para recontar as notas.

Severino ficou ali em pé, com o cheque na mão, sem acreditar no que estava acontecendo. Pálido, suando frio, o ex-desempregado, que pedira ao patrão para sair mais cedo do serviço para pegar seu primeiro salário, após meses sem ver a cor de dinheiro, não conseguira o seu intento e voltaria para casa de bolso vazio. Mais uma vez.