terça-feira, 9 de novembro de 2010

O antepassado

O bisavô de Dorothéia ficava sempre naquela parede, junto à porta de entrada. Era um imenso retrato pintado, moldura de madeira trabalhada. Trajava terno escuro, e no meio da gravata escarlate sobressaía um belo brilhante que, se não fosse pintado, valeria uma fortuna. Do bolsinho do colete saía uma corrente dourada que fazia uma curva elegante e se escondia na aba oposta do paletó aberto. Era de um relógio que nunca aparecia. Talvez nunca tivesse existido.

A figura do antepassado da dona da casa era imponente, com aparência de comendador, cabeça erguida, a fisionomia grave. Estaria na casa dos sessenta, os cabelos grisalhos repartidos do lado, e um bigode cinza bem aparado assentava-se sobre os lábios finos. Equilibrado no nariz adunco, um pince-nez de ouro emoldurava os olhos azuis, sempre cravados em quem passasse à sua frente. Enfim, a tela, a moldura e o personagem formavam um conjunto como convinha a um antepassado de uma família tradicional.

Em casa, só quem apreciava aquele quadro eram a própria Dorothéia e os cupins. Estes, por duas ou três vezes, haviam obrigado a família a contratar custosos trabalhos de restauro do enorme trambolho. Trambolho aliás era como Eufrates, marido de Dorothéia, considerava a tela.. Desde o casamento, e lá se iam 30 anos, o tal antepassado passou a morar com eles. Ao longo do tempo, Eufrates, com o apoio dos filhos, havia negociado diplomaticamente junto à mulher a retirada do retrato de casa. Mas ela sempre se mantinha irredutível.

Um dia, o casal recebeu uma proposta irrecusável de famoso antiquário: a tele seria comprada e muito bem paga por um cliente seu que havia ficado rico e necessitava do respaldo de uma ascendência tradicional. Após muito pensar e muito se lamentar, a mulher rendeu-se aos argumentos de Eufrates e dos filhos. Afinal, os valores envolvidos na transação haveriam de curar a sua dor de consciência.

O bisavô de Dorothéia mudou de casa e de nome, e hoje posa de antepassado — com status de comendador — da nova família, o retrato orgulhosamente pendurado em uma outra parede da cidade.